Descobrindo o Prazer de Ser Vista
Os sinos da Catedral batendo sete e meia davam aquela cara de missa à cidade inteira, mas dentro da casa de Helena não tinha nada santo naquela manhã.
Helena atravessou a cozinha amarrando o robe na cintura. Quarenta e dois anos, quadril cheio, coxa firme. Loira, mas não loira menina — loira de salão caro e raiz aparecendo meio centímetro, assumida. Seios pesados de mulher que já amamentou e não esconde isso, pele clara marcada de sol das visitas à fazenda dos pais. Boca larga. Voz baixa. Aquele tipo de presença que não pede espaço: ocupa.
Marco estava encostado na pia, mexendo o açúcar no café. Corpo de homem resolvido de cidade pequena: peito largo, braço forte de quem descarrega caixa na loja, barriga que já desistiu de ser tanquinho e nem liga. Tinha 35 anos e um rosto honesto, desses que a cidade toda confia. Baixinho, sólido, moreno de italiano do sul. Aliança grossa.
Eles não estavam mal. Esse era o problema.
Casamento sem briga, sem grito, sem falta de respeito. Só morno.
Ela olhou pra ele e sentiu carinho. Ele olhou pra ela e sentiu gratidão. Nenhum dos dois sentiu aquele aperto urgente de “eu preciso te tocar agora”.
Isso doía mais do que traição.
Laura entrou na cozinha logo depois, andando descalça, camiseta larga da faculdade de Direito e short curto que mostrava mais perna do que provavelmente a mãe gostaria. Vinte e um anos. Corpo de juventude sem culpa. Pele dourada de quem pega sol sem medo. Cabelo preso num coque preguiçoso. Perfume doce.
Laura beijou o rosto da mãe primeiro, depois do pai. Sempre foi assim. Família era um ritual.
— Vou passar na fazenda hoje — ela disse enquanto abria a geladeira. — Vovô quer que eu leve os recibos pra contabilidade.
A fazenda.
A fazenda dos pais de Helena sempre foi mais do que propriedade de família. Era eixo. Circulação de gente, caminhão, compra de boi, caminhão de ração, vaqueiro entrando e saindo. E lá, quem mandava no curral era sempre alguém de confiança. No momento, esse alguém era Gustavo.
Helena sentiu o nome dele na cabeça antes mesmo de pensar conscientemente.
Gustavo.
Ela o conhecia fazia tempo, mas só na semana anterior tinha olhado de verdade. Não o corpo, ainda — ela olhou o jeito. O modo como ele tirava o chapéu quando falava com ela. O modo como ele chamava o sogro dela, o pai dela, de “seu João” num tom de respeito de quem sabe que come do trabalho, mas não abaixa a cabeça pra qualquer um.
Marco olhou para Helena um meio segundo a mais do que o normal.
Ele percebeu quando a esposa pensa em outra coisa. Sempre percebeu.
Só não sabia ainda em que direção isso estava indo.
– – – – –
TERÇA-FEIRA – GUSTAVO ENTRA NA HISTÓRIA
O escritório de Helena ficava numa casa antiga perto da ponte, chão de madeira escura e cheiro de café forte. Quadros da Laura criança na parede. Diploma na sala. Estante cheia de pastas etiquetadas na mão dela, letra bonita.
Gustavo entrou e mudou o ar.
Era mais alto que Marco. Mais largo nos ombros. A camiseta grudava no tórax suado do trabalho da manhã, e não era academia — era serviço real. O jeans velho encaixava pesado nas pernas e subia justo no quadril. O cinto grosso de couro marrom trazia uma fivela grande, prateada, oval, dessas que puxam o olhar de qualquer pessoa direto para o centro da cintura do homem. A fivela dava aquela moldura perigosa pra região logo abaixo do umbigo. Isso não era por acaso. Isso é homem que sabe que corpo também é ferramenta.
Ele tirou o chapéu de aba larga — couro escurecido de sol, não fantasia de vaqueiro de rodeio — e segurou com respeito contra o peito antes de sentar. Não era “boné na mão”. Era chapéu de quem manda na porteira. Chapéu que avisa de onde ele vem.
— Doutora — ele disse. Voz grave, baixa. Sem enrolar sílaba. — A Camila falou que eu tenho que procurar a senhora. Disse que ‘se eu quiser salvar meu nome’, tem que ser com a senhora.
Helena ergueu uma sobrancelha. “Salvar meu nome.” Ela gostava desse tipo de frase.
— Me conta o que está acontecendo — ela disse.
Ele contou.
Gustavo era, formalmente, capataz da fazenda dos pais dela. Extraoficialmente, era quem impedia que funcionário folgado fizesse corpo mole, quem resolvia cerca arrebentada, quem mandava carregar o caminhão, quem evitava que gente de fora se criasse no terreiro. Era homem de confiança. E homem de confiança, em cidade pequena, mexe com vaidade.
Camila — a esposa dele — não estava lidando bem com isso.
Helena esperou. Ele continuou.
— A Camila está dizendo que vai no fórum pedir separação de corpos. Ela anda falando… coisa que me pega mal. Dizendo que eu fico olhando menina nova. Que eu fico inventando fantasia demais pra cama. Que eu não respeito ela como mulher. Que eu quero usar ela pra brincadeira.
Ele engoliu.
— Eu nunca encostei em mulher nenhuma além dela — ele completou, firme.
Helena estudou o rosto dele. O maxilar marcado. A barba por fazer que já sombreava o pescoço. A boca que ficava meio apertada quando ele tentava ser educado. A maneira como o antebraço dele, quando apoiou no joelho, mostrou veia saltada, braço de quem segura cavalo e tambor de ração de 30 quilos como se fosse nada.
Ela sentiu o corpo responder.
Não foi “paixão”. Foi corpo mesmo. Instinto antigo.
E sentiu outra coisa junto: poder.
Porque ela sabia que ele estava ali não só pedindo defesa jurídica. Ele estava entregando o pescoço.
— O que você quer dizer com “fantasia demais”? — Helena perguntou, sem ironia.
Ele mexeu o chapéu entre as mãos, nervoso pela primeira vez.
— Eu só tentei apimentar — ele disse, olhando pro chão e depois voltando pro olhar dela como quem se obriga a ser sincero. — Falei pra ela brincar de personagem. Tipo enfermeira, professora… essas coisas de filme bobo que a gente vê. Falei uma vez de “colegial”, foi a primeira que saiu da boca, nem pensei. A Camila travou. Disse que eu tava pensando em menina nova. Falou que eu olho demais pra… pra Laura.
Helena manteve o rosto neutro.
– Você olha pra minha filha? – ela perguntou, clara. Helena não rodeava.
Gustavo levantou os olhos, rápido, ferido.
— Não. Nunca. A menina é… neta dos patrões. E criança de casa boa. Eu respeito. Juro.
Helena acreditou. Sentiu no corpo que era verdade. O interesse dele não estava em menina novinha. O interesse dele estava na mulher adulta que mandava na sala.
E isso, sim, acendeu nela.
Ele continuou:
— Camila acha que eu quero… que eu quero botar outra pessoa entre nós. Mas não é isso. Eu só… eu gosto de viver as coisas grande, sabe? Gosto de sentir que eu tô vivo. Que eu tô pegando fogo. Só isso.
“Eu gosto de sentir que eu tô vivo.”
Helena engoliu seco.
Porque era exatamente isso que ela não sentia fazia tempo.
Marco apareceu na porta nesse momento. Ele veio trazer uns recibos, nada demais. Mas parou. Viu os dois. Viu a forma como Gustavo naturalmente virava levemente o corpo na direção de Helena, como se ela puxasse ele. Viu a forma como Helena estava sentada: costas retas, perna cruzada alta, coxa aparecendo na fenda da saia, braço apoiado na mesa de forma firme.
Marco reconheceu aquilo.
Era Helena em modo força total. Como ela era com ele, no começo.
Ele sentiu uma fisgada que não era raiva. Era ciúme, sim. Mas era um ciúme estranho, cheio de calor. Quase como ver fogo e querer ficar um pouco mais perto.
Não entendeu ainda. Mas sentiu.
– – – – –
QUARTA-FEIRA – CAMILA, LAURA
Casa da fazenda dos pais de Helena. Cozinha grande. Mesa de madeira marcada de faca antiga. Cheiro de café passado na hora e feno vindo da porta aberta.
Camila estava sentada, ombros tensos. Vinte e quatro anos. Nova demais pra ser chamada de “mulher vivida”, velha demais pra ser tratada como menina. Morena clara, cabelo liso preso num rabo apressado. Corpo bonito daquele jeito que não é de selfie em academia, é de genética boa: cintura fina, peito cheio, coxa firme. Mas ela andava sempre meio encolhida, como quem pede desculpa por existir.
Camila não era “mulher insegura de 30”. Ela era uma mulher muito jovem tentando segurar um homem maior que a vida dela, e morrendo de medo de não dar conta.
Helena colocou duas xícaras na mesa e sentou de frente.
— Fala comigo — Helena disse.
Camila respirou fundo e desabou, mas não em choro, e sim em raiva:
— Ele quer fazer coisa diferente comigo, e eu até queria também, só que ele fala as coisas do jeito errado! Ele fala e eu fico pensando que ele queria outra pessoa e tá usando minha cara! Ele olha, Helena. Ele olha. Ele olha pra menina que entra aqui como se fosse… um doce.
Helena abriu um pouco o queixo.
Laura estava na pia lavando copos. Ela ficou imóvel, mas ouvindo cada palavra.
Helena falou baixo, firme:
— Você está com ciúme da Laura?
Camila apertou os lábios.
— Eu tô com medo de ser… menor. — A voz dela saiu quase num sussurro, e aí foi sincera de verdade. — Eu tenho medo de nunca ter sido suficiente pra ninguém. Nunca ter sido o centro de nada. Nem dele.
Laura virou lentamente, ainda segurando um copo.
Aquilo bateu nela como um estalo.
Porque ela viu tudo de cima, como se ficasse fora da cena olhando. Viu que Camila não era uma esposa traída pela fantasia do marido. Era uma mulher muito jovem morrendo de medo de não ser desejada do jeito inteiro que ela sonhou que ia ser.
Laura secou a mão no pano de prato e chegou mais perto, numa calma estudada.
— Camila — Laura disse num tom que parecia colo, não ataque — meu pai não olha pra ninguém do jeito que ele olha pra minha mãe. E o Gustavo olha pra minha mãe do jeito que meu pai olhava pra ela quando eu era criança. Não tem ninguém olhando pra mim nessa história. Pode parar de se machucar com isso.
Camila sentiu o rosto pegar fogo. A tensão defensiva que ela trazia nos ombros soltou um pouquinho. Os olhos dela, finalmente, encararam Laura direto.
Olharam mesmo.
E Laura segurou esse olhar. Sem baixar. Sem brincar.
Foi aí que a semente real da reviravolta nasceu. Não tinha nada de “triângulo vulgar”. Era outra coisa: Camila, pela primeira vez, sendo olhada como centro. E Laura, pela primeira vez, encontrando uma mulher que reagia a ela não como “filha da patroa”, mas como mulher.
Helena viu isso acontecendo em tempo real e entendeu o tamanho da bomba que estava armando naquela casa.
Mas ela não interrompeu.
Ela só perguntou pra Camila, com toda calma do mundo:
— Você quer separar porque acha que ele te traiu? Ou porque você não suporta a ideia de nunca ter sido desejada direito?
Camila não respondeu com palavras.
Mas o silêncio foi claro.
– – – – –
QUINTA-FEIRA – MARCO EMPURRA
Marco fez a primeira jogada dele.
Ele atendeu o celular da Helena.
— Ô Gustavo, é o Marco, marido da doutora. Ela tá enrolada aqui, mas mandou dizer que você passa lá amanhã cedo, viu? Assunto urgente pra resolver antes de Camila fazer besteira no fórum.
Helena não tinha mandado nada.
Ele marcou o horário estrategicamente: logo depois que Helena volta da academia, ainda quente, pele corada, camiseta colada leve de suor, cabelo preso alto. Ele sabia exatamente que versão da esposa derretia homem que nem gelo no asfalto.
Por quê ele fez isso?
Nem ele saberia responder direito agora. Se você perguntasse, ele diria “pra ajudar o caso”. Mas tinha outra camada: ele queria ver. Não é que ele quisesse que ela traísse. Ele queria ver ela viva. Queria ver aquela Helena que ele conhecia de antes reaparecer inteira. E queria estar presente.
Isso já não é passividade. É participação.
Ele não sabia ainda que isso ia virar cumplicidade, mas o corpo dele já sabia.
– – – – –
SEXTA-FEIRA – A ESTRADA
A desculpa oficial era simples: Helena precisava levar Gustavo pra colher assinatura de um funcionário antigo como testemunha. “Coisa de processo”.
Era o tipo de viagem curta que não precisava de muita preparação. Carro da própria Helena. Estrada de terra que ela conhece de olhos fechados. Fim de tarde quente.
Só que Marco entregou o carro dela “já no cheiro”. Tanque quase seco.
— Vai dar pra ir e voltar, tranquilo — ele disse, casual.
Não ia.
Helena ressabiada que não ia. Ela sentiu. Mas não comentou.
E não ia mesmo. O carro morreu num trecho afastado, daqueles onde o celular falha, onde a cerca é baixa e dá pra ouvir o zumbido dos insetos mais alto que qualquer outra coisa.
Gustavo desceu abriu o capo, verificou e constatou, mas não tinha o que fazer, muito longe para buscar gasolina, doutora de salto alto, e muito rude deixa-la sozinha, melhor esperar o pessoal na fazenda notar que não voltaram e virem resgatar.
O calor dentro do carro ficou quase úmido.
Gustavo tirou o chapéu e jogou no banco de trás. O pescoço dele brilhava de suor. O cheiro dele encheu o carro: couro, capim, homem. Um cheiro pesado, presente, que nenhuma colônia urbana disfarça.
Helena sentiu aquilo entrar nela de um jeito que Marco não entrava mais. Não era culpa. Era biologia. Era fome velha acordando.
Gustavo falou baixo:
— Se eu perder ela agora… eu perco tudo. Ela diz que vai no juiz amanhã.
— Você não vai perder nada enquanto eu estiver nesse caso — Helena respondeu. Tom frio. Tom de quem manda.
Ele sorriu de canto. Aqueles sorrisos que não são felizes; são submissos.
— Se você mandar eu ajoelho aqui e agradeço — ele disse, ainda olhando nos olhos dela, e não era frase suja. Era entrega.
E foi ali. Foi ali mesmo. Direto. Forte. Faminto.
Não vamos narrar ato explícito, mas vamos deixar claro o que importa:
Helena tomou. Não esperou ser convidada. Pegou. Com força. Como mulher que sabe o que quer e não está pedindo desculpa. E ele deixou. Ele entregou tudo que ele tinha, inteiro, sem freio, como se aquilo fosse juramento de lealdade. Ela fez com ele coisas que não deixava Marco fazer. Ela deixou ele atravessar limites que com Marco tinham virado rotina protocolar.
E ela sentiu uma onda de vida que ela achou que tinha acabado depois dos 35.
Demorou? Sim. Foi urgente. Muito a explorar, Quase bruto. Corpo batendo em corpo. Respiração quente. Barulho de roupa apressada sendo puxada e recolocada, já chega vamos parar, talvez só mais uma vez e outra. Um gemido controlado nos dentes, não escandaloso, mas real. Aquele tipo de momento que não cabe culpa ainda porque o corpo não deu tempo pra culpa existir.
Acabou.
Silêncio grosso dentro do carro parado.
Os dois ainda respirando forte, ainda desalinhados, ainda quentes. Um barulho de veiculo chegando.
E aí — imediatamente, sem o menor tempo para conversa, arrependimento ou “o que foi isso que a gente fez?” —
Marco estacionou a caminhonete dele atrás do carro dela.
O barulho da caminhonete batendo pedra na estrada foi como tiro.
Helena ainda estava ajeitando a blusa. Gustavo ainda estava com o cinto aberto. O ar dentro do carro ainda estava carregado daquele cheiro espesso de sexo recente e calor humano.
Marco desceu calmo.
Calmo.
Sem correr, sem bater porta.
Botina no cascalho. Mão no bolso. Olho direto.
— Sabia que esse tanque não ia voltar da curva, não — ele disse, sorriso pequeno no canto da boca. — Vamos engatar o reboque antes de escurecer.
Ele nem perguntou “o que aconteceu”. Ele nem fingiu que não viu.
Ele viu.
Viu Helena com a boca ainda levemente inchada. Viu Gustavo com a fivela grande torta e o jeans mal fechado. Viu suor onde não teria suor só por causa de calor.
E uma coisa MUITO importante acontece aqui:
Marco não fez cena.
Marco não ficou pequeno.
Marco não virou piada.
Marco virou cúmplice.
Ele engatou a corrente no eixo do carro dela, abaixou para passar a barra por baixo e, enquanto fazia força ali, virou pra Gustavo e falou, como se estivesse num churrasco comum:
— Ô Gustavo… você viu que o pneu traseiro dela tá comendo por dentro? Depois dá uma olhada nisso pra mim lá na fazenda? Não quero Helena rodando assim não.
Tradução dessa fala?
“Eu tô vendo que vocês dois acabaram de transar dentro do carro da minha esposa, mas eu não vou te tratar como macho rival. Eu vou te tratar como homem que eu confio pra cuidar dela.”
Isso mexe com a libido de Helena mais do que o sexo em si.
Porque isso não é humilhação. É aceitação. É “eu sei quem ela é e, mesmo assim, eu continuo do lado dela. E mais: isso também me excita”.
Quando eles entram na caminhonete pra voltar — Helena e Marco na frente, Gustavo indo atrás segurando o volante do carro rebocado, aquela cena ridiculamente íntima de trio improvisando logística — o cheiro daquilo tudo ainda tava no ar. Ainda tava no banco. Ainda tava neles.
Não houve tempo pra arrependimento. A adrenalina tampou qualquer moralismo.
E Marco guarda cada detalhe. Pra rever depois. Literalmente.
– – – – –
SÁBADO – O PACTO
Helena acordou com a pele ainda quente. Marco estava acordado também.
Ele encostou nela de um jeito diferente daquela manhã.
Não foi sexo de casal velho. Foi agarrado. Firme. Um pouco urgente. Quase como se ele estivesse provando uma coisa que ele sempre quis provar mas não tinha coragem: “ela pode ter sido de outro homem, mas ela é minha também, agora, assim, do jeito que ela está, carregando cheiro dele ainda, e isso não me destrói — isso me incendia”.
As mãos dele estavam diferentes. A boca dele estava diferente. O ritmo dele estava diferente.
E Helena, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que não estava dividida entre “culpa” e “prazer”. Ela estava inteira. Completamente inteira.
Isso é o ponto central: liberdade.
Depois, Marco levantou pra pegar café e deixou o notebook dele aberto na sala.
Helena passou. Viu a área de trabalho. Viu um arquivo de vídeo recém-criado com data e hora da noite anterior.
Ela clicou.
Imagem da câmera que ele tinha colocado escondida dentro do carro dela, dias antes. Mostrava a parte interna do carro, de lado. Som baixo. Imagem tremida. Mas o essencial estava ali.
Ela se viu. Viu o próprio corpo. Viu Gustavo se entregando pra ela. Viu a própria mão mandando. Viu o próprio rosto.
Sentiu o coração bater na garganta.
Ela não sentiu “traição dupla”.
Ela sentiu choque… e depois uma onda lenta de algo muito mais forte: compreensão.
Marco voltou do banho, toalha na cintura, cabelo molhado.
— Você colocou câmera no meu carro — ela disse. Nem raiva, nem acusação. Constatação.
Marco parou. Respirou fundo. Ele podia mentir. Não mentiu.
— Coloquei — ele disse, simples. — Coloquei faz uns dias. Antes de ontem mesmo. Eu… eu precisava ver você viva de novo. Eu precisava ter certeza que ainda existia fogo aí. Mesmo que não fosse só pra mim. Eu precisava ver.
Ele respirou de novo, fundo, encarou ela, e deixou finalmente cair a máscara:
— E eu fiquei duro vendo. Muito.
Não era pedido de desculpa.
Era confissão.
Helena andou até ele devagar, nua embaixo da camiseta grande dele que ela tinha jogado por cima do corpo, coxa roçando, cabelo caindo no ombro. Pegou o queixo dele com a mão.
— Então você vai continuar vendo — ela disse, olhando dentro dos olhos dele — mas comigo. Nunca contra mim.
Essa frase sela o casamento.
Não é “eu perdoo sua traição”.
Não é “eu aceito você me trair”.
É: “nossa vida íntima agora inclui honestidade sobre o desejo real dos dois”. É cumplicidade erótica assumida.
– – – – –
DOMINGO – ORBITAS NOVAS
Domingo parecia almoço de família normal. Mas não era.
Gustavo e Camila vieram à fazenda pra assinar os papéis que Helena tinha preparado pra segurar a separação no formato menos destrutivo possível. Nada de escândalo no fórum. Nada de humilhar ninguém. Tudo limpo, discreto, juridicamente bonito.
Gustavo estava calmo. Não olhava mais pra ninguém como distração. Ele olhava pra Helena como homem olha pra dono. Respeito e desejo misturado.
Marco viu isso e não odiou. De verdade: não odiou.
Ele olhou Gustavo como quem olha um parceiro inesperado num acordo que ainda está sendo desenhado. Nada de macho alfa troglodita. Nada de “minha fêmea”. Muito mais sofisticado: “eu vejo o que você sente por ela — e isso prova o quanto ela é grande. E saber o tamanho dela me alimenta também.”
Camila chegou diferente.
Menos armada. Menos “você está me traindo?”, mais “eu estou tentando entender quem eu sou nessa história”.
Laura desceu da varanda com dois copos de suco na mão e um sorriso calmo.
Ela entregou um copo pra Camila e, quando Camila pegou, a ponta dos dedos das duas se encostou e ficou ali um pouquinho mais do que precisava. Não foi acidente. As duas sabiam.
Camila ficou vermelha nas bochechas, mas não afastou a mão.
Laura falou baixo, íntima:
— Você fica bonita quando prende o cabelo assim pra trás. Mostra seu rosto inteiro. Ninguém nunca te falou isso?
Camila engoliu seco. Ninguém tinha falado desse jeito.
Ali não tinha ciúme de Laura.
Ali tinha Laura oferecendo exatamente aquilo que Camila passou a semana inteira dizendo que nunca teve: ser o centro do olhar de alguém.
E Camila desejou aquilo. Não como vingança contra Gustavo. Como descoberta dela mesma.
Helena, da cozinha, viu. Não fingiu que não viu. E, pela primeira vez, não sentiu medo moral de mãe. Sentiu alívio.
Porque, de repente:
– Gustavo parou de ser “ameaça pra Laura”.
– Camila parou de ser apenas “esposa ciumenta”.
– Laura parou de ser “menina da faculdade”.
Todo mundo ganhou nome e desejo próprio.
Mais tarde, já quase fim de tarde, rindo todos juntos na varanda, Laura soltou, do nada:
— Semana animada pra vocês, né?
Gustavo quase engasgou. Camila mordeu o lábio pra não rir. Marco deu uma risada curta, de canto.
Helena virou pra filha com aquele olhar de “nem começa”. Laura devolveu com cara de santa, mas piscou só pra Helena e murmurou de leve, só pra ela:
— Calma. Eu só pego quem quer ser pega.
Helena segurou o riso e a cabeça girou rapidinho porque ela entendeu tudo: a filha não estava brincando de provocar marido alheio. A filha estava cuidando de Camila. Dando pra Camila exatamente aquilo que Camila pediu o tempo todo sem saber pedir: ser escolhida.
E no meio desse tabuleiro inteiro, Helena sentiu uma paz estranha.
Não era bagunça.
Não era promiscuidade.
Era todo mundo finalmente assumindo o próprio desejo em voz alta e, milagrosamente, ninguém usando isso pra ferir ninguém.
No fim da noite, cama.
Helena deitou de costas, Marco encostou nela por trás, mão pesada segura na cintura dela, não como coleira, mas como pertencimento.
Pela primeira vez em muitos anos, ela dormiu pensando: “eu não estou presa a ninguém. Eu estou escolhida. E eu escolho também.”
Marco fechou os olhos com uma certeza nova: amar Helena não significava encolher Helena. Significava justamente o contrário — deixar ela acender inteira, olhar, desejar aquilo, e ainda assim ser o lugar onde ela volta e encosta o corpo pra dormir.
Ele não se sentiu fraco.
Ele se sentiu finalmente parte.
Fim.
